Apresentamos um pequeno fragmento do posfácio que será publicado no volume 1 da edição de Little Nemo, da Figura Editora: um percorrido por toda a vida e obra de Winsor McCay até a criação de sua obra-prima, escrito pelo reconhecido tradutor e crítico especializado em quadrinhos Érico Assis. Você pode comprar o livro na pré-venda no Catarse até o dia 26 de outubro e assinar entre os colaboradores:
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Érico Assis*
A página é de 31 de dezembro de 1905. No último dia daquele ano, o sonho de Nemo leva-o a encontrar Pai Tempo, que lhe explica como se fazem os anos.
Segurando o número 9, o homem barbudo e de asas explica ao garoto:
“É só tocar aqui que você terá nove anos. A cada ano que tocar, ficará um ano mais velho.”
Diz o garoto: “Oh, toquei nele e cresci!”. Pai Tempo deixa o garoto com quinze anos. Depois, um moço de vinte e cinco. Depois, um adulto calvo de quarenta e oito. Pai Tempo diz que a brincadeira acabou e faz o garoto voltar a ser garoto. Vai embora, mas deixa Nemo brincando no seu reino. “Mas tome cuidado”, adverte.
Nemo, curioso, começa a mexer nas gavetas do local. Abre a de 1999 e de repente vira um idoso corcunda. “Ei, Pai Tempo! Onde você está? Volte! Volte aqui! Oh, quero ser um garotinho de novo! Oh!”. O sonho acaba no quadro seguinte. O último quadro, como sempre.
O que a página deixa nas entrelinhas e nos entrequadros é que a idade de Nemo acompanha a idade do século. Nemo chega aos vinte e cinco anos quando Pai Tempo mexe na gaveta de 1925. O garoto fica quase centenário quando mexe na gaveta de 1999.
Mesmo que continue por todos seus quadrinhos com o aspecto e as roupas de criança, e assim seja imaginado e reimaginado até hoje, naquela página entendemos que Nemo nasceu em 1900, junto ao século XX. Nemo é o século XX.
Para contribuir com o século que definiu a potência das histórias em quadrinhos, a potência dos desenhos animados e que terminou com seus trabalhos como prova de que aquela “diversão das massas” é arte, Winsor McCay foi um filho do século anterior, o XIX.
Não se sabe com exatidão quando ele nasceu. Há vários indicativos de que tenha sido em 26 de setembro de 1869 – a data que está em sua lápide. Às vezes ele dizia que havia nascido dois anos depois, em 1871, talvez para parecer mais novo. Mas também há registro de uma criança com seu nome completo, “Zenas Winsor McCay”, nascida dois anos antes, em 1867. Se este último registro vale, a nacionalidade de McCay também muda: ele teria nascido no Canadá, na região de Ontário, e não nos Estados Unidos como costumava declarar. Biógrafos dizem que nem o próprio McCay sabia sua idade exata.
O que se sabe é que seus pais, Robert e Janet, eram canadenses de ascendência escocesa e que, entre seus vinte e trinta anos (os registros dos dois também se perderam) cruzaram a fronteira para morar em Spring Lake, estado de Michigan, EUA. Eles vieram provavelmente a convite de Zenas G. Winsor, magnata da indústria madeireira que contratou Robert como capataz de lenhadores. Robert batizou o primeiro filho em homenagem ao patrão, mesmo que o pequeno Zenas preferisse atender por Winsor.
McCay também passou a carreira assolado por aqueles que escreviam seu nome com K: “McKay”. Não estavam de todo errados. A família, ainda no Canadá, tinha o sobrenome tipicamente escocês com K e trocou pelo C duplo para fugir de uma briga entre imigrantes. A mudança de uma letra cortou os laços com os clãs e rixas do Velho Mundo.
Diz uma história de família que, numa noite de inverno, a casa dos McCay pegou fogo. A família se abrigou na casa dos vizinhos. O pequeno Winsor teria pegado um preguinho no chão e começou a desenhar a catástrofe na camada de gelo sobre uma vidraça.
Os pais diziam que ele já tinha ótimo conhecimento técnico de desenho aos seis anos. Sua memória também era impressionante: ele desenhava qualquer coisa que havia visto, com detalhes. “Nunca desenhei um vagão de trem”, ele contou numa entrevista de 1911, explicando seu processo, “mas, se mandassem eu desenhar, aposto que acertaria cada detalhe. Por quê? Porque estudei os vagões com os olhos; guardei aqui no meu crânio. E aqui ele vai ficar até o momento em que eu precise.”
Em outra declaração, de 1926, McCay contou que também era importante para seu processo pensar o desenho como distração. “Nunca fiz o que eu faço para agradar outra pessoa nem para me exibir”, ele disse, referindo-se especificamente a quando era criança. “Nunca guardei meus desenhos. Eu dava o desenho para quem quisesse ou jogava fora; eu desenhava nas cercas, no quadro negro do colégio, em papel, numa telha, na parede do celeiro… Eu não conseguia parar de desenhar.”
O pai Robert juntou dinheiro para mandar o filho a uma escola profissionalizante em Ypsilanti, no leste de Michigan, onde ele ia aprender contabilidade, datilografia, administração e ganhar linhas para colocar no currículo. McCay foi morar na cidade grande, mas ficou ainda mais fascinado pelo que havia na cidade vizinha e maior, Detroit. Sua atração preferida na metrópole era o Wonderland and Eden Musee, um dimemuseum: uma típica atração dos EUA de fim do século XIX que misturava circo, vaudeville e freak show. Um combinado de atrações baratas para o grande público. Ele ia para lá sempre que podia e também quando não podia – matando aula. Desenhava tudo de interessante que via em um local cheio de atrações para os olhos.
Começou a ganhar trocados desenhando o público. Além de aprender como se agrada um cliente, começou a receber elogios e também virou atração do dimemuseum. O pregoeiro berrava as atrações ao público: “Virá a época em que o desenho que este jovem faz de vocês será de valor e vão querer guardá-lo. Em questão de poucos anos, vocês terão medo de perder o retrato que ele lhes fez hoje”. Estava certo.
O jovem também chamou a atenção de John Goodison, professor de desenho em uma universidade de Detroit. Goodison ofereceu-se para dar aulas particulares a McCay, que absorveu conhecimentos avançados sobre materiais de desenho e pintura, perspectiva, cores, contraste e desenho de observação. Além disso, o professor foi uma inspiração: ali estava alguém com uma carreira reconhecida nas artes, algo que os pais de McCay não imaginavam e que o próprio nunca havia visto. Era o que ele queria para si.
De volta a Spring Lake, ele informou aos pais que queria a vida de artista. Eles não se convenceram. McCay, pelo que consta, passou o chapéu entre amigos e juntou as poucas economias dos desenhos que havia feito em Detroit para tentar a sorte em uma cidade ainda maior: Chicago.
Supõe-se que ele se atraiu pelo famoso Art Institute da cidade, onde poderia aprender com professores de renome. Ele não tinha dinheiro para pagar pelas aulas, contudo. Matriculou-se em uma escola de artes menor, a escola fechou e, a partir daí, ele nunca mais passou pela educação formal.
Conseguiu um emprego na National Printing and Engraving Company, mistura de gráfica e agência de publicidade na qual desenhou cartazes para empresas locais, companhias ferroviárias e, seguindo uma constante da carreira, circos. A indústria de entretenimento estava de vento em popa, com circos itinerantes que colavam de cinco mil a oito mil cartazes a cada cidade onde estacionavam. A concorrência visual era grande e McCay topava bater a concorrência.
O trabalho na gráfica e com clientes por fora o levou mais longe: Cincinnati, onde foi empregado como artista de outro dimemuseum. Foi lá que ele passou praticamente toda a década de 1890, refinando sua habilidade artística com mais cartazes, peças publicitárias e desenhos murais que viravam atração pública no momento em que ele desenhava.
No primeiro ano em Cincinnati, McCay apaixonou-se por uma garota que entrou no dimemuseum. O flerte virou namoro, que em pouquíssimo tempo virou casamento. Como os pais dela não aprovavam, eles fugiram para se casar no estado vizinho, Kentucky. Havia um detalhe gritante: Maude tinha apenas 14 anos. Era 1891: McCay, possivelmente com 22, talvez 24, pode ter mentido que tinha 19 anos para a diferença em relação à noiva gerar menos muxoxo. O primeiro filho, Robert Winsor, nasceu em 1896. Marion, a segunda e última, em 1897.
O emprego no dimemuseum sempre foi periclitante. Com a família crescendo, em 1898, McCay aceitou um convite do jornal local, o Commercial Tribune, para trabalhar no departamento de arte. Foi sua entrada na imprensa, em que trabalharia pelo resto da vida. Ele ilustrou editoriais, produziu charges e fez suas primeiras histórias em quadrinhos. As narrativas desenhadas com imagens em sequência eram tratadas como novidade em alta na imprensa. Ele também fazia frilas nas mesmas funções para a famosa revista Life.
Na virada do século, ele foi trabalhar em outro jornal da cidade, o Cincinnati Enquirer, no qual virou chefe do departamento de arte com um salário maior. Foi lá que criou sua primeira série em quadrinhos ou protoquadrinhos: A Tale of the Jungle Imps by Felix Fiddle, em colaboração com o escritor George Randolph Chester.
Fiddle era um personagem fictício que narrava poeminhas, digamos assim, “fortemente inspirados” nas Histórias Assim Mesmo, de Rudyard Kipling. Eram contos do tipo “Como o Elefante Ganhou a Tromba”, “Como o Crocodilo Ganhou Aquela Bocarra”, “Como o Avestruz Ficou Tão Alto”. Os Jungle Imps do título são um trio de garotos negros com roupas de selvagem que participam de todas as histórias, provocando os bichos até eles terem que passar por uma transformação.
Um dos Imps acabaria saltando para Little Nemo. Que estava logo ali, poucos anos depois, em mais uma mudança de cidade. A última mudança: para Nova York.
Winsor McCay já tinha nome nos Estados Unidos, pelo menos no pujante mundo da imprensa daquele início de século. A prova foi a carta que recebeu de um editor do New York Herald que havia visto seu trabalho em Cincinnati e o convidou a trabalhar em Nova York.
O Herald, fundado em 1835, tinha o terceiro lugar entre os maiores jornais da cidade. A acirrada disputa pela primeira e segunda vaga ficava entre o New York World, de Joseph Pulitzer, e o New York Journal, de William Randolph Hearst. A briga entre estes dois se dava no sensacionalismo, nas opiniões políticas contundentes, na tecnologia gráfica para encher os olhos dos leitores e, ligado a este último front, nos quadrinhos.
O New York World lançou a era contemporânea dos quadrinhos no país com Hogan’s Alley, de Richard Outcault, em 1895, berço do famoso personagem Yellow Kid. No ano seguinte, Hearst roubou toda a equipe que fazia o suplemento onde Hogan’s Alley saía e trouxe para seu New York Journal. Outcault seguiu fazendo tiras com o Garoto Amarelo no novo jornal, mas o New York World manteve os direitos do título Hogan’s Alley e contratou outro artista para dar sequência à atração. Assim, os dois jornais proclamavam-se a casa de Yellow Kid. A presença do garoto dentuço de roupa amarela nos dois jornais é uma das origens do termo yellow journalism, que se refere ao jornalismo sensacionalista.
O Herald era visto como um pouco mais intelectualizado que os concorrentes “amarelos”. Era lido por quem frequentava o teatro, a ópera, os clubes. Em 1902, quando a poeira da guerra entre os jornalões estava baixa, o Herald conseguiu contratar Richard Outcault. Foi quando o pioneiro criou Buster Brown – Chiquinho, no Brasil –, seu novo personagem.
McCay chegou ao Herald nesse contexto, para somar ao rol de atrações que o jornal matutino – e seu irmão vespertino, o Evening Telegram – estava montando. O novo funcionário era pau para toda obra no que dizia respeito a desenhar, ilustrar artigos ou fazer charges. Mas também quis mostrar serviço criando quadrinhos...
Encontre o posfácio completo na edição.
*Érico Assis é jornalista, tradutor, professor e crítico especializado em histórias em quadrinhos. Colabora com jornais, revistas e websites, tendo reunido parte de seus textos na coleção de livros Balões de Pensamento. O segundo volume do seu livro está em pré-venda no Catarse até o dia 7 de novembro de 2022. Você pode comprar aqui:
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